Padre Nosso
Duas décadas de vida apenas e não se habituava já a alguns dos gestos quotidianos da modernidade. A cidade haviam crescido, absorvendo o seu seminário, que antes se encontrava nas redondezas. Não tinha apenas estendido o emaranhado de ruas e ruído, também subia em direcção aos céus. As gruas frenéticas pareciam puxar do solo sagrado caixas enormes de luz que abrigam corpos e ruídos e suores e lixo. Inevitável se tornou a falta de espaço, como marca dos dias é a promiscuidade. Não o enjoava tanto o movimento de quem passava, cada vez mais depressa, aos encontrões, sem olhar, cada vez mais despido ou vestido estranhamente, esburacado por fragmentos de metal ou tatuado com cores e sinais do fim. Nada, nem chão, nem céu, nem o corpo oferecido pelo Criador era respeitado. Tinha poucos anos, mas os suficientes para perceber uma missão, e coragem bastante para a levar a cabo. Escusado será dizer que detestava crematórios. Somos pó e ao pó devemos voltar, mas lentamente, dando tempo à eternidade para se refazer a partir do desfazer dos humanos tecidos. Assim quis o Criador.
Tudo isto pensa o padre, devidamente paramentado, enquanto espera, por detrás do muro de gavetas, no cemitério. Espera que se atrase alguém do último e melancólico funeral, aí pelas 17H00. Espera para, como é já costume, benzer-se antes de correr a empurrar para a vala aberta, trinta metros abaixo no declive, aquele ou aquela pobre de Cristo. É bonito o contraste da sua batina roxa esvoaçante contra o fio de verde do Tejo. Afinou o ritual para, disfarçadamente se for o caso, o que raramente é naquele deserto pacífico, chegar a tempo de lhes dar a extrema unção ou uma pazada. Vão em mais de duas dezenas de almas que escaparam, por via da sua obra, ao demónio da modernidade.
“És pó e ao pó voltarás”, pareciam dizer os corpos com o som cavo da queda.