segunda-feira, maio 31, 2004

Padre Nosso

Duas décadas de vida apenas e não se habituava já a alguns dos gestos quotidianos da modernidade. A cidade haviam crescido, absorvendo o seu seminário, que antes se encontrava nas redondezas. Não tinha apenas estendido o emaranhado de ruas e ruído, também subia em direcção aos céus. As gruas frenéticas pareciam puxar do solo sagrado caixas enormes de luz que abrigam corpos e ruídos e suores e lixo. Inevitável se tornou a falta de espaço, como marca dos dias é a promiscuidade. Não o enjoava tanto o movimento de quem passava, cada vez mais depressa, aos encontrões, sem olhar, cada vez mais despido ou vestido estranhamente, esburacado por fragmentos de metal ou tatuado com cores e sinais do fim. Nada, nem chão, nem céu, nem o corpo oferecido pelo Criador era respeitado. Tinha poucos anos, mas os suficientes para perceber uma missão, e coragem bastante para a levar a cabo. Escusado será dizer que detestava crematórios. Somos pó e ao pó devemos voltar, mas lentamente, dando tempo à eternidade para se refazer a partir do desfazer dos humanos tecidos. Assim quis o Criador.
Tudo isto pensa o padre, devidamente paramentado, enquanto espera, por detrás do muro de gavetas, no cemitério. Espera que se atrase alguém do último e melancólico funeral, aí pelas 17H00. Espera para, como é já costume, benzer-se antes de correr a empurrar para a vala aberta, trinta metros abaixo no declive, aquele ou aquela pobre de Cristo. É bonito o contraste da sua batina roxa esvoaçante contra o fio de verde do Tejo. Afinou o ritual para, disfarçadamente se for o caso, o que raramente é naquele deserto pacífico, chegar a tempo de lhes dar a extrema unção ou uma pazada. Vão em mais de duas dezenas de almas que escaparam, por via da sua obra, ao demónio da modernidade.
“És pó e ao pó voltarás”, pareciam dizer os corpos com o som cavo da queda.

quinta-feira, maio 20, 2004

Quem com ferros mata...

“Quem com ferros mata, com ferros morre”, toca o balancé infantil antes de encetar a cantoria. Que acompanhará a dança e alegrará a criança. Surreal! “Será normal?!” Guerra Junqueiro. A avenida. Quinze minutos de esplanada. Não, não era a Mexicana. Oito indigentes. Dos oito, sete agarrados, jovens, e uma idosa de 80 anos. Pedem esmola. De entre eles, uns intimidam, outros limitam-se a pedir. Uns provocam e desafiam. Outros resignam-se e vão. Ela suplica em atenção à idade, ao desaparecimento do marido, à parca reforma. Vocifera contra a maldade do mundo, os incendiários. Tias para cima. Tias para baixo. Muita cosmética. Exteriores sinais de riqueza. Suuuuuuuuuper bem parecer. Eu e outros a esplanar… Desocupados. Poucos a trabalhar, mas afanosamente. Para a frente e para trás. “Um batido de maracujá”. “Um café com adoçante.” “Uma torrada, não muito queimada, e um néctar de pêssego.” “A conta fáchavor.” “Olhe, a torrada veio muito queimada.” “Esta velhota não tem vergonha… recebe duas reformas e anda aqui a pedir.” O entardecer de um Sábado de Agosto, na Guerra Junqueiro. Lisboa. Retrato de um Portugal doente. Superficialidade, maledicência, arrogância. Drogados e idosos maltratados. “Quem com ferros mata, com ferros morre.” Morrerá?

in EpiCurtas

Sábado

Era um Sábado madrugador. Sábado retemperador.
- Foda-se! Assaltaram-nos o carro... – gritei ao avistar a porta entreaberta e os fios cortados e descarnados no local onde devia estar o rádio.
Sábado a começar entornado... Sábado estragado.
Corri ao lado, ao largo dos Loios, apresentar queixa ao quartel da GNR. O sargento de dia sorriu ao afirmar que não era a primeira e não seria a última vítima. Pareceu-me adivinhar-lhe no sorriso e no olhar o prazer da confirmação do mundo.
Sábado dele, de zombaria. Sábado meu, de porcaria.
- Oh, homem... Hoje é Sábado de Feira da Ladra!
Corri.
Desci a Santa Luzia, segui por São Tomé e acabei em Santa Clara.
Sábado suado. Sábado já cansado.
Perscrutei a maralha – de lanternas, àquela hora, já apagadas...
Topei o meu rádio! Antigo. Manhoso. Analógico.
Sábado irado. Sábado a ficar excitado.
O artista era um lugar comum. Magricela. De olhar cavado e braço picado.
Mas o olhar mostrava uma vida pelo corpo escondida.
Gente à volta remexia-lhe a quinquilharia. Muita.
Pensei em confrontá-lo. Avancei.
Sábado de ousadia. Sábado de valentia.
- Oh, amigo... quanto é que vale esse rádio antigo?
- Olhe que este rádio é antigo, mas é dos bons!
- Muito bem! Quanto vale?
- Uns 10 euros...
- Olhe... e se eu lhe provar que o rádio é meu? Que me foi roubado...
Palpitou por um instante. Um segundo. Um segundo antes de retomar a vida escondida.
Os olhares à volta oscilavam entre a curiosidade assumida e centrada e a dissimulada e enviesada. Mas olhavam.
- É seu?! Prove lá isso...
Sábado intenso. Sábado denso.
- O ponteiro desse rádio não mexe. Rode o botão da frequência e notará que o ponteiro não mexe.
Rodou. Não mexeu. Parou e atirou:
- Muito bem... uma vez que era seu... faço-lhe metade do preço!!!

Sábado desconcertante. Sábado hilariante.

afundar

Viu primeiro o objecto e só depois o seu cérebro treinado reconheceu a marca. Não estava treinado o suficiente e se se tratasse de um treino poderia perder pontos. Viu uma genuíno objecto de design, e tratá-lo assim era chamar-lhe um nome, um nome feio, agredi-lo:
– Cartier, disse alto ao mesmo tempo que disparava, espalhando o ouro e demais metais preciosos, como se sentisse o prazer proletário do chumbo a desfazer a nobreza, agora menor e sem assinatura. A sua assinatura era a da morte, e trazia um olhar condizente. Sem ponta de inteligência, mas com a determinação do aço.
(Pessoalmente, acho a água mais obstinada, mas as convenções pedem a frieza resultante do calor, i.e., metal fundido, na vez de materiais de higiene diária, i.e., água de torneira.)
– Quem está aí?, foi o que se ouviu na bela casa de formas em forma de siza, i.e. esse mais zê, tudo esticado mais luz.
O homem de negro que havia dito, sem sotaque, Cartier, tinha a tranquilidade do trabalho de casa bem feito: alarmes desligados, criadas bem amarradas, mordomos e cães bem mortos, mulher e polícia pagos e fodidos, não sei se por esta ordem.
O gordo correu, em variantes de Calvin Klein (não é óbvio?), de encontro à morte, que trajava Armani (não menos óbvio).
Puf, fez a bala e o gordo ao cair.
O assassino, competente e de preto, sem remorso mas com cheque, saiu ao mesmo tempo que passava a factura (na agenda electrónica isto é possível):
– Banqueiro X morto, cem mil euros (por exemplo), soletrou em voz alta.
O logotipo da factura anunciava, com simplicidade mas com griffe de designer (Henrique Cayatte, Jorge Silva?): Empresa de limpeza de crimes.
O assassino, caucasiano e casual, embora sem remorso de preto de leste, afastou-se pensando:
– Fundar um banco é crime maior que assaltá-lo!

terça-feira, maio 18, 2004

olhar fatal

– Eles não paravam de olhar para mim… Não tive alternativa.

A mulher que continuava a dizer-me isto em ladainha, quase cantando, tinha as mãos a escorrer sangue. Procurei-lhe os olhos em busca de uma pista, algo que me fizessem entender para além das palavras, essas eram cantilena inexpugnável. Nem tinha a certeza que fosse a mim que ela se dirigisse.

– Eles olhavam-me fixamente… Não tive alternativa.

O sangue pingava sonoramente, e isso não ajudava nada a concentrar-me na tentativa de lhe apanhar, com os meus, os olhos dela. Azuis, como uma confissão brutal. Tentou-se desviar-se de mim, talvez esboçar uma fuga, gozando com a minha experiência. A rasteira fê-la cair sobre as nódoas de sangue, espalhando dezenas de sons de berlindes de carne sobre o empedrado hospitalar.
Eles não estavam fixos nela, os cinquenta olhos humanos conservados no Museu que tentava roubar e lhe saltam agora dos bolsos. Obriguei-a, olhos nos olhos, a apanhá-los um a um. Friamente, teve que limpar o vermelho que sujava alguns, voltar a pô-los no aconchego do formol. Tinha-se cortado no roubo e o sangue era dela. Há roubos que me irritam. A colecção tinha agora cinquenta e dois olhos. A minha colecção.

quinta-feira, maio 06, 2004

"Antes morta" - disse ela.
E pensar que o que eu mais queria era fazer-lhe a vontade!


in Max Aub, Crimes Exemplares